"Uma questão de sobrevivência" alerta Observatório do Clima

21 de março de 2023 | Notícias

mar 21, 2023 | Notícias

Do Observatório do Clima – Não se trata mais de um alerta da comunidade científica para evitar uma possível tragédia – trata-se do princípio mais básico, comum a qualquer ser vivo: sobrevivência. Ou mudamos a rota agora, ou nos restará a catástrofe. A emergência climática deu lugar a uma situação de emergência humanitária.

O alerta – mais um, só que ainda mais enfático – está no relatório síntese do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, da ONU), publicado na manhã desta segunda-feira, após uma semana de intensa negociação entre governos e cientistas. Os dois “polos” debatem para garantir que o texto tenha força científica e relevância governamental. Duas cientistas brasileiras – a vice-presidente do IPCC Thelma Krug, e a revisora Mercedes Bustamante – participaram do grupo que redigiu o relatório síntese, que tem 93 autores. O documento foi finalizado na tarde de ontem em Interlaken, na Suíça, frustrando a expectativa de que ficasse pronto na última sexta-feira.

O teor das 37 páginas não chega a ser inédito, já que se trata de um apanhado dos últimos seis relatórios publicados pelo IPCC, mas funciona como a mensagem final dos cientistas nesta década crítica, visto que o próximo ciclo de análise só deve começar a ter resultados por volta de 2028.

Para quem achava que a mudança climática era uma fantasia, o texto mostra que a realidade bateu à porta: em 2019, a concentração atmosférica de CO2 (410 partes por milhão) foi a maior em pelo menos 2 milhões de anos, e as de metano (1.866 partes por bilhão) e óxido nitroso (332 partes por bilhão), as maiores em 800 mil anos. Setenta e nove por cento das emissões globais de gases de efeito estufa vieram dos setores de energia, indústria e transporte e 22% da agricultura, silvicultura e de outras formas de uso da terra.

O IPCC vem estudando desde 2018 o aumento da temperatura mundial até 1,5 ºC. Quase todos os cenários apontam que esse limite será ultrapassado entre 2030 e 2035, ainda que temporariamente (no momento já são 1,1ºC acima da era pré-industrial). Os cientistas projetaram diversos cenários para o futuro, e apenas naqueles em que há ações mais ambiciosas de redução de gases de efeito estufa (GEE), o mundo consegue voltar à temperatura abaixo desse limiar antes do fim do século.

Quanto maior a magnitude e maior a duração do overshoot (quando a temperatura da Terra ultrapassa um determinado limite por algum tempo e depois retorna), mais exposto estará o planeta, aumentando os riscos para sistemas naturais e humanos. Apesar de temporário, o dano causado será permanente e irreversível em alguns ecossistemas de resiliência baixa, como os polos, as montanhas e as costas impactadas por degelo ou por aumento do nível do mar – e claro, lembrando que o aumento de 1,5ºC em si já é um péssimo cenário.

Alerta para o Brasil

Segundo Stela Herschmann, especialista em política climática do Observatório do Clima, 1,5ºC é uma meta de sobrevivência necessária para garantir um futuro climático mais seguro para todos nós. “A mensagem que fica, por parte dos cientistas, é de que precisamos garantir que não haja overshoot ou que ele seja o menor possível, pelo menor tempo possível. Cada fração de um grau de aquecimento importa. Não estamos preparados para a devastação climática que significa ultrapassar 1,5ºC. Vai nos custar mais vidas, tanto humanas quanto de inúmeras outras espécies.”

Hoje, de 3,3 a 3,6 bilhões de pessoas – quase metade da população da Terra, sobretudo do hemisfério sul – já vivem em condição de vulnerabilidade devido às mudanças do clima. Essas pessoas têm 15 vezes mais chances de serem mortas num desastre climático.

Futuro distópico: gráfico do IPCC sugere uma velhice hostil para os nascidos nesta década.

Para evitar ou atenuar o overshoot, o documento toma como parâmetro as emissões de GEE projetadas de 2019 e traça metas bem específicas para os próximos anos. A primeira delas: reduzir a emissão em 43 [34-60]% até 2030. Em seguida:

Redução de 60 [49-77]% até 2035;
69 [58-90]% até 2040;
84 [73-98]% até 2050.

Isso significa agir desde já. Significa também que a indústria fóssil poderá ter “ativos encalhados”, ou seja, investimentos que não chegarão ao mercado, como já foi mencionado no relatório anterior do IPCC, publicado em 2022. O texto apontava que para haver uma estabilização do aumento da temperatura global em 1,5ºC, o uso de carvão mineral precisa cair 95%, o de petróleo 60% e o de gás natural 45% até 2050. Isso é um alerta para o Brasil, que ampliou investimentos no pré-sal e sancionou uma lei permitindo a construção de novas termelétricas a carvão até 2040.

É preciso promover uma mudança radical no setor de energia. Para atingir as emissões líquidas zero de CO2 e GEE, será necessária a transição de combustíveis fósseis sem captura e armazenamento de carbono (CCS) para fontes de energia de muito baixo ou zero carbono, como as renováveis. Fontes solar e eólica são de longe as opções de menor custo com o maior potencial para reduzir as emissões até 2030. O preço da energia renovável tem caído. Entre 2010 e 2019, houve uma queda de 85% no preço da energia solar e 55% na energia eólica. Também houve uma queda de 85% no preço das baterias de lítio, usadas em carros elétricos.

“Estamos caminhando quando deveríamos estar correndo”

Durante a coletiva de imprensa sobre o relatório síntese, realizada na manhã de hoje, António Guterres, secretário-geral da ONU, propôs uma “agenda de aceleração” para o Pacto de Solidariedade Climática que apresentou ao países do G20. O pacto prevê que os grandes emissores façam esforços extras para cortar emissões de gases-estufa, e que os países mais ricos disponibilizem recursos financeiros e técnicos para países em desenvolvimento. “A humanidade está vivendo sobre uma fina camada de gelo — e esse gelo está derretendo rapidamente”, disse Guterres, enfatizando a urgência da ação climática.

O plano proposto pelo secretário-geral da ONU segue o princípio de “responsabilidade comuns, mas diferenciadas” e sugere, entre outras medidas, a aceleração das metas para emissão líquida zero de carbono até 2050. “Os líderes dos países desenvolvidos devem se comprometer a zerar as emissões líquidas o mais próximo possível de 2040. Isto pode ser feito”, afirmou. Os países em desenvolvimento devem se comprometer a zerar as emissões líquidas o mais próximo possível de 2050.

Hoesen Lee, presidente do IPCC, destacou que, em relação ao AR-5, o quinto relatório umas das principais novidades do relatório síntese lançado hoje é a ênfase dada à participação humana na crise climática. Lee reforçou ainda a centralidade da justiça climática, afirmando que “as perdas e danos são parte de nosso futuro” e que as ações de mitigação precisam ser coordenadas às de adaptação. O presidente do IPCC lembrou, ainda, que há opções disponíveis e soluções apontadas pela ciência, e que vontade política e apoio da sociedade são decisivos para que a ação climática ocorra com a urgência que a crise exige: “Estamos caminhando quando deveríamos estar correndo”, criticou.

Quando o próximo relatório do IPCC sair, o do 7º ciclo, o mundo já estará bastante mudado. Daí a urgência da mensagem – e, sobretudo, a urgência de que a humanidade implemente as metas estabelecidas.

Eis mais alguns pontos de destaque do relatório:

É preciso frear com urgência tanto a produção de combustível fóssil, como os subsídios para a indústria causadora do problema. O carbono emitido pela infraestrutura já existente, acrescido do carbono que virá das construções ainda planejadas, já é suficiente para superar o orçamento de carbono (a quantidade de gases de efeito estufa que pode ser emitida até a atmosfera esquentar 1,5°C).

O investimento anual em mitigação para 2020 a 2030 em cenários que limitam o aquecimento a 1,5°C ou 2ºC precisa ser de três a seis vezes maior do que o aplicado hoje. Mas há um problema: os fluxos financeiros públicos e privados de combustíveis fósseis ainda são maiores do que os de adaptação e mitigação do clima. Em suma: não falta dinheiro, falta vontade política e econômica, além de inteligência, já que investe-se mais na causa do que na solução do problema. O benefício econômico com corte de gastos em saúde que decorreria da melhora da qualidade do ar seria aproximadamente o mesmo, ou possivelmente ainda maior do que os custos de reduzir ou evitar emissões.

Políticas públicas de redução precisam focar em transporte público e em mobilidade ativa, como o uso de bicicleta. É importante haver também campanhas de conscientização dos efeitos do consumo exagerado, para que as pessoas adotem modelos de vida de baixo carbono. Em números: os 10% mais ricos contribuem com 34 a 45% das emissões domésticas globais de GEE, enquanto os 50% mais pobres contribuem com 13 a 15%. Mas são exatamente esses os que estão em risco.

Cada aumento acima de 1,5º C pode ter consequência para a biodiversidade, ampliando o risco de extinção de espécies ou perda irreversível em ecossistemas de florestas, recifes de coral e do Ártico. Aumenta também o risco de atingir pontos de não retorno, com mudanças abruptas e/ou irreversíveis no sistema climático.

As mudanças climáticas causadas pelo homem já estão causando impactos adversos generalizados e perdas e danos relacionados à natureza e às pessoas. As comunidades vulneráveis que historicamente menos contribuíram para as mudanças climáticas são desproporcionalmente afetadas.

Existem lacunas de adaptação, que continuarão a crescer com os atuais ritmos de implementação. Os atuais fluxos financeiros globais para adaptação são insuficientes e limitam a implementação das opções de adaptação, especialmente nos países em desenvolvimento.

Mesmo quando eficaz, a adaptação não impede todas as perdas e danos.

Os riscos e impactos adversos projetados e as perdas e danos relacionados à mudança climática aumentam a cada incremento do aquecimento global, sendo mais altos para o aquecimento global de 1,5°C do que atualmente, e ainda mais altos a 2°C.

Com o aumento do aquecimento, cada região deve experimentar cada vez mais mudanças simultâneas e múltiplas. Um exemplo: a subida relativa do nível do mar e os consequentes eventos extremos. Atualmente, estes eventos ocorrem uma vez a cada século, mas são projetados para ocorrer pelo menos anualmente em mais da metade dos locais até 2100. Outras mudanças regionais projetadas incluem a intensificação de ciclones tropicais e/ou tempestades extratropicais, e o aumento da aridez e da temporada de incêndio.

As políticas implementadas até o fim de 2020 deverão resultar em emissões globais de GEE mais elevadas em 2030 do que as NDCs (da sigla em inglês para Contribuições Nacionalmente Determinadas, o compromisso de ação climática de cada país) indicariam. Ou seja, sem um fortalecimento das políticas climáticas ao redor do mundo, o aquecimento global projetado até 2100 é de 3,2ºC. As metas anunciadas antes da COP 26 são igualmente insuficientes, mesmo se implementadas na íntegra. Com ela, o mundo poderá chegar a um aquecimento de 2,8ºC até 2100. Em suma: além da “lacuna de emissões”, há também uma “lacuna de implementação”.

PERGUNTAS E RESPOSTAS

O que é o IPCC?

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas foi criado em dezembro de 1988 pela Organização Meteorológica Mundial e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Ele é um comitê composto de centenas de cientistas do mundo inteiro escolhidos pelos governos com a missão de avaliar periodicamente o estado da arte do conhecimento científico sobre as mudanças do clima. Essas avaliações são publicadas periodicamente, na forma dos chamados Relatórios de Avaliação. Os cientistas e os relatórios se distribuem em três grupos de trabalho: o Grupo 1 (WG1), que trata da base física (as causas) das mudanças do clima, o Grupo 2 (WG2), que trata de impactos, vulnerabilidades (as consequências) e adaptação, e o Grupo 3 (WG3), que lida com a mitigação (as soluções).

O que é o documento publicado hoje?

Em seus 34 anos de existência o IPCC já publicou seis grandes Relatórios de Avaliação: o FAR (First Assessment Report), em 1990; o SAR (Second Assessment Report), em 1995; o TAR (Third Assessment Report), em 2001; o AR4 (Fourth Assessment Report), em 2007, e o AR5 (Fifth Assessment Report), entre 2013 e 2014, além de uma série de relatórios especiais e outros documentos. O sexto relatório, AR6 teve três tomos, lançados entre 2021 e 2022. O documento que saiu hoje é o relatório-síntese (Synthesis Report), que amarra as conclusões dos três grupos de trabalho, além de três Relatórios Especiais anteriores (o relatório especial sobre o Aquecimento Global de 1,5 ºC, o relatório especial sobre Mudança Climática e a Terra, e o relatório especial sobre o oceano e a criosfera em um clima em mudança). Como o objetivo principal do IPCC é informar políticas públicas para combater a mudança do clima, o relatório-síntese tem um sumário executivo para tomadores de decisão, conhecidos pela sigla SPM (“Summary for Policymakers”). Os sumários são documentos dirigidos para políticos e tomadores de decisões, que resumem as principais conclusões técnicas dos relatórios.

Os governos interferem no IPCC?

Sim e não. A linguagem dos SPM é negociada nas assembleias do IPCC, das quais participam representantes de governos do mundo inteiro. Por isso os sumários tendem a ser conservadores, porque é preciso ajustar a escrita aos caprichos da diplomacia e às suscetibilidades de cada governo. No entanto, os sumários técnicos e os relatórios não são submetidos aos governos. E, o mais importante, os governos não mudam os dados nem as conclusões do painel – quem dá as cartas é a ciência.

O IPCC é alarmista?

Ao contrário: como reflete o consenso científico e os estudos mais aceitos da literatura, o IPCC tende a ser bastante conservador em seus relatórios, e mais conservador ainda em seus sumários para tomadores de decisão. Um exemplo clássico dessa cautela aconteceu em 2007, no AR4, com os dados sobre nível do mar: embora já houvesse estudos mostrando que o degelo da Antártida e da Groenlândia podia ser mais rápido do que o imaginado e que o mar poderia subir mais de 1 metro até o fim do século, o relatório ficou com uma estimativa mais baixa, 88 cm.

O que significa a linguagem estatística do IPCC?

Como trata de ciência e de cenários para o futuro, o IPCC não pode fazer previsões. Pode, no máximo, dizer qual é a probabilidade de um determinado fato, observação ou fenômeno. Em outras palavras, o painel precisa comunicar as incertezas inerentes a qualquer ciência. Para isso, lança mão de uma classificação estatística onde:

Virtualmente certo: 99% a 100% de probabilidade

Extremamente provável: 95% a 99% de probabilidade

Muito provável: 90% a 95% de probabilidade

Provável: 66% a 90% de probabilidade

Mais provável que improvável: mais de 50% de probabilidade

Tão provável quanto improvável: 33% a 66% de probabilidade

Improvável: menos de 33% de probabilidade

Muito improvável: menos de 10% de probabilidade

Extremamente improvável: menos de 5% de probabilidade

O painel também expressa intervalos de confiança no entendimento científico de uma questão. Pense na probabilidade de um mesmo resultado caso um evento se repita dez vezes, por exemplo. Assim:

Muito alta confiança: 9 em 10 chances

Alta confiança: 8 em 10 chances

Média confiança: 5 em 10 chances

Baixa confiança: 2 em 10 chances

Muito baixa confiança: 1 em 10 chance

Informações do Observatório do Clima (ROBERTO KAZ e LEILA SALIM)



Este projeto está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Saiba mais em brasil.un.org/pt-br/sdgs.

Veja também

See also

Teste 20250816 1605

Teste 20250816 1605

Lorem ipsum dolor sit amet, consectetur adipiscing elit. Aliquam vitae lorem consectetur ante scelerisque elementum. Duis feugiat sollicitudin aliquam. Curabitur justo enim, pulvinar nec convallis ac, porttitor quis urna. Etiam tincidunt fringilla odio in...